A “Memória dos
Infantes”
As Clarissas vila-condenses envidaram porfiados esforços no
sentido de levar por diante a beatificação dos fundadores do seu mosteiro. O
bem informado Mons. José Augusto Ferreira, no seu livro Os túmulos de Santa Clara de Vila do Conde, esclarece as
diligências delas. A dada altura, em nota de rodapé, remete o leitor para a
documentação que se encontrava então na Caixa 289, n.º 1, do Registo Geral, do
Arquivo Distrital de Braga, que se refere a tais diligências. No Vaticano, é a seguinte
a localização do Processo de D. Afonso Sanches e sua esposa: Arquivo Secreto do
Vaticano, Congregação dos Santos, 288-289.
Voltando ao Mons. José Augusto Ferreira, leiamos pois parte
do que escreveu no primeiro capítulo do livro citado:
“A história da vida dos Fundadores do extinto Mosteiro de
Santa Clara foi escrita e publicada em 1726 por Fr. Fernando da Soledade,
cronista da Ordem de S. Francisco, da Província de Portugal; porém este
trabalho não é uma biografia feita sem preocupação de escola ou de partido, mas
aliás uma apologia destinada a justificar o pedido da beatificação dos mesmos
Fundadores, apresentado na Cúria romana pela Abadessa e freiras de Santa
Clara, e apoiado pelo Arcebispo de Braga D. Rodrigo de Moura Teles, que
pessoalmente presidiu em Vila do Conde, no mês de Julho do ano de 1722, à
instrução do processo de non cultu,
seguido doutro sobre as virtudes e milagres dos referidos Fundadores”.
O livro do Fr. Fernando da Soledade sobre os Fundadores
intitula-se Memória dos Infantes.
Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, este
livro, escrito no período barroco, assenta principalmente em documentos
fidedignos que se analisam e de que se deduzem conclusões fiáveis. Quando o
autor se apoia em factos que hoje não hesitámos em classificar como lendários, transcreve
opiniões abalizadas por cronistas anteriores.
O livro é uma obra bem planeada.
Vejam-se alguns extractos:
A lenda sobre a origem
da ideia da fundação do mosteiro
Conta o autor a páginas 49-51, como coisa verídica:
“Residiam (D. Afonso
Sanches e a esposa) neste tempo em seu castelo de Vila do Conde, quando o
mesmo Senhor foi servido mostrar-lhes por sonhos, em três noites, uma escada
misteriosa que do mesmo lugar subia ao Céu envolta em fumo aromático. E posto
que a princípio aceitou cada um deles a representação como coisa de sonho,
vendo-a contudo continuada e conferindo-a entre si, entenderam ambos, pelo Céu
ilustrados, que a divina graça por este meio os dispunha para o grande serviço
que lhe fizeram na erecção do seu verdadeiramente Real Mosteiro.
Dele (desse “grande
serviço”) se trata, com toda a individuação, na segunda parte da História Seráfica (…)”.
Que se saiba, os fundadores não tiveram em Vila do Conde
alguma vez residência e muito menos castelo. Para dar fiabilidade à lenda, Fr.
Fernando remete para a História Seráfica,
que era uma crónica franciscana.
A magnificência da
igreja
Um dos argumentos que “testificam a grande virtude destes
veneráveis Fundadores”, segundo o Fr. Fernando da Soledade, é as magnificências
que deram à igreja do mosteiro. Nas páginas 51 e 52, expõe o autor este ponto
de vista:
“O segundo ponto
digno de observação é a grandeza do edifício material, e com especialidade a da
igreja, obra primariamente de quem desejava dedicara Deus avultados obséquios.
Mais parece templo de uma catedral que de um mosteiro de religiosas, porque,
além da sumptuosidade dele, o plantaram em forma de cruz, de modo que do coro
não se divisam as extremidades dos braços, donde se vê que mais atenderam à
majestade do Senhor do que à necessidade das freiras.
Logo o enriqueceram com semelhante magnificência e zelavam
tanto a conservação dela que na escritura do dote ordenaram que nenhuma coisa
pertencente ao culto divino pudesse sair por empréstimo, data ou empenho fora
do mosteiro. Todas as outras oficinas dele fizeram com real grandeza, mas
acomodada contudo ao estado de suas habitadoras”.
Virtudes dos
Fundadores
Para enaltecer “as virtudes dos admiráveis Infantes”,
valoriza o autor da Memória dos Infantes
as disposições constantes do documento da fundação do Mosteiro, descobrindo aí
razões que julga inteiramente convincentes (págs. 57-59), quando, se calhar,
eram disposições bastante comuns:
“Ficou porém na escritura da instituição e dotação do
Mosteiro de Vila do Conde um monumento das suas obras, porque nela, como no cristal
de um espelho, claríssimo se divisam sem afectação alguma todas as virtudes que
constituem uma criatura perfeita.
Nela se acham muitos argumentos da fé, esperança e caridade
com que Deus os enriquecera; muito da justiça, prudência, fortaleza e temperança
com que o mesmo Senhor os adornara. Enfim, nela se admiram outros esmaltes de
virtudes, porque, nas suas copiosas cláusulas, não tem alguma que não respire
fragrâncias de piedade.
Resplandece a fé, dizendo nela que, entre as criaturas do
orbe, dera Deus ao homem alma racional para conhecer, amar, honrar e louvar
mais que todas que não têm juízo, e com este discernir o bem do mal e conhecer
que são a Deus mais obrigados os que dele recebem mais benefícios. Declaram
também que, depois da morte, haviam de aparecer no tribunal divino, onde se
remuneram as boas obras da vida, e que só o prémio destas é perdurável e não
caduco e transitório, como são todos os bens do mundo.
Confessam e reverenciam o mistério da Santíssima Trindade,
dizendo que à honra do Pai, e do Filho e do Espírito Santo fundavam o seu
mosteiro, e que também erigiam em louvor da Virgem Maria, Nossa Senhora, e de
toda a Corte celeste, e da bem-aventurada Santa Clara”.
Um milagre
São muitos os milagres aduzidos por Fr. Fernando da Soledade
para provar a santidade dos Fundadores. Veja-se este, trasladado da História Seráfica:
“… com muita individuação de vê outro aparecimento do
Venerável Infante socorrendo ao seu mosteiro com o dinheiro de que a abadessa
necessitava. Edificava esta uma enfermaria e achando-se sem ele para satisfazer
aos oficiais o mandou procurar na Vila por um religioso leigo chamado Fr.
Sebastião que assistia aos negócios da sua comunidade. Forma porém infrutuosas
as suas diligências, porque sem algum, voltava para o Mosteiro quando lhe saiu
ao encontro um peregrino de aspecto venerando pedindo-lhe que fizesse entrega a
certa religiosa duma encomenda que trazia, visto ser quase noite e lhe ser
preciso passar logo a abarca.
Recebeu-a o religioso e vendo que o letreiro dela estava
sumido entendeu que o embrulho era misterioso e abrindo-o achou duzentas moedas
de ouro de quinhentos réis cada uma, que logo entregou à escrivã do mosteiro. Faltou-lhe
porém uma circunstância de que procederam repetidos sustos porque nas duas
noites seguintes lhe bateram à porta com força na porta da cela e, como não
achava pessoa alguma, recebeu tal medo que se retirou para o Convento dos
Frades, onde continuou o despertador. E aparecendo o mesmo peregrino com
semblante irado lhe disse.
- Porque te mostras ingrato à piedade de Deus com tão
profundo silêncio? Vai logo e manifesta o que te há sucedido, para que
reconheçam benefício de tão grande e nunca fartem no seu santo serviço.
Assim o executou tanto que foi manhã, fazendo convocar a
comunidade a quem relatou o caso para glória do Senhor e reconhecimento do
cuidado do seu servo, que sem dúvida julgaram ser o mensageiro e portador daquele
auxílio”.
Santos ou não?
Fr. Fernando da Soledade (Porto, 1663 – Lisboa, 1737) era
membro supranumerário da Academia Real de História Portuguesa e foi autor de
várias obras. Argumenta com inteligência e subtileza e provavelmente tenta dar
força a uma tradição local que exaltava a santidade dos Fundadores do Mosteiro,
tradição que viria de longe e se prolongou. Mas podemos perguntar-nos: estaria ele
inteiramente convencido da santidade dos seus biografados? Serão fiáveis os argumentos
a que recorre? Os milagres aduzidos mereceriam efectiva credibilidade?
Segundo um trabalho do Dr. Joaquim Pacheco Neves, D. Afonso
Sanches tinha filhos bastardos, mas Fr. Fernando não os conhece – e a sua
existência bastaria para entravar o processo. Então, alonga-se a exaltar a
educação de D. João de Albuquerque, filho dos Fundadores, o que abonaria em seu
favor. De novo lhe escapa que D. João de Albuquerque teve bastardos, sem ter
qualquer herdeiro legítimo…
Além disso, D. Afonso Sanches mergulhou o país em guerras bem
gravosas. Teria feito tudo que estava o seu alcance para as evitar?
Um dos seus poemas também não o recomenda muito como santo;
senão veja-se:
Estes, que m’ora tolhem mia Senhor
Que a não posso aqui per rem veer,
Mal que lhe pês, não me podem
tolher
Que a não veja sem nenhum pavor,
Que morrerei e tal tempo virá
Que mia Senhor fermosa morrerá:
Então a verei desi. Sabedor
Soom de tanto, por Nosso Senhor,
Que, se lá vir o seu bem-parecer,
Coita nem mal outro não posso
haver
Em o Inferno, se com ela for;
Desi sei que os que jazem alá
Nenhum deles já mal não sentirá,
Que ante haverão de acartar sabor.
Garante ele que sabe, “por Nosso Senhor”, que, se fosse para
o Inferno com a amada, seria feliz com ela. Ela bastaria até para tornar
felizes todos os que lá se encontrassem. Esta hipérbole não é falar muito próprio
de santidade!
Mais fácil seria certamente exaltar as virtudes de Teresa
Martins. Essa, sim, parece ter tido uma vida sem manchas.
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