A LENDA DA BERENGÁRIA


Na Igreja do Mosteiro de S.ta Clara de Vila do Conde

Quem entra na Igreja de S.ta Clara, se se quiser dirigir de imediato para o claustro, antes de aí chegar, passa por um pequeno corredor. Nele, se reparar, encontra à direita uma lápide funerária onde se pode ler o nome da abadessa Beremgária.
Se, depois de observar a lápide, entrar na sacristia, que fica ao lado, então, sobre o arcaz, poderá admirar uma tela seiscentista que pretende ilustrar o milagre da Berengária: o milagre da lenda desta abadessa.
Que milagre é esse? Esperemos um pouco mais.
Ao lado da porta que sai da sacristia para a igreja, há (havia) uma pequena tábua pendurada na parede, que fala de alguns nomes de pessoas ligadas ao mosteiro e que brilharam pela santidade. Evocam-se nela os nomes dos fundadores e evoca-se sobretudo a Abadessa Berengária. Reza ela:

“Na era de 1315 se fundou este Convento de S.ta Clara de Vila do Conde pelo Infante Dom Afonso Sanches de Albuquerque, f.º do nobre rei D. Dinis, rei de Portugal, e Dona Teresa Martins, sua mulher, f.a do Conde Dom João Afonso.
O testamento e doações que fizeram ao dito convento foi no ano de 1356.
No dito convento tem Deus feito muitos milagres por algumas religiosas Santas que nele morreram, entre as quais foi a Santa Berengária, que neste lugar que agora é a Capela do Senhor dos Passos – então servia de capítulo – mandou, sendo Abadessa (que o foi por milagres por santa obediência), às religiosas que viessem a capítulo e, não o fazendo elas, mandou pela mesma obediência às defuntas, que então eram sete, que viessem a Capítulo obedecer-lhe, como fizeram, e se levantaram das sepulturas e estiveram em Capítulo até que a dita Santa lhes mandou que se recolhessem. O que, vendo as vivas, com grande arrependimento lhe foram pedir perdão.
Esta Santa religiosa está sepultada à entrada da porta à mão direita aonde está esta tábua”.

O texto da tábua está longe de ser claro. Em relação à Abadessa Berengária, há que separar o trigo do joio: ela é uma figura histórica, viveu por volta de 1400; o milagre que lhe é atribuído, esse é lendário.
Se fosse verdadeiro, parece que poderíamos legitimamente chamar-lhe santa, como faz a tábua. Porém…
Mas ouçamos agora a lenda mais em pormenor.

A Lenda da Berengária

Conta-se que a certa altura da história do Convento de Santa Clara de Vila do Conde havia bastante relaxamento na vida religiosa das monjas. Orgulhosas, recusavam os trabalhos, davam-se a falatórios inconvenientes e eram pouco zelosas em acorrer à oração comunitária.
Mas havia uma excepção, a irmã Berengária. Humilde, cumpridora, imitava os melhores exemplos das passadas Clarissas, não se furtando às tarefas mais custosas, que executava com alegria e sentido fraterno.
Aconteceu entretanto que a abadessa morreu e foi preciso eleger a sucessora. Havia muitas interessadas no cargo, que dava autoridade e visibilidade social. Quem não pensava nisso era sem dúvida a solícita Berengária.
Na hora da eleição, cada uma das eleitoras, para que as amigas não acedessem ao abadessado, votou do modo que menos pudesse prestar – votou na Berengária – pensando assim protelar a decisão, ao dar o voto a uma freira que considerada incapaz.
Mas, quando a irmã Berengária verificou que tinha sido eleita segundo todas as regras, decidiu aceitar o lugar. Não o tinha pedido, mas não o recusava.
As outras monjas mofavam e negavam-se a obedecer-lhe: que a votação não fora a sério.
Perante a rebeldia manifestada, a nova abadessa foi firme e ousada: mandou que as monjas falecidas, que ali jaziam sepultadas, viessem prestar-lhe a homenagem de obediência que as vivas recusavam.
Eis então que as antigas irmãs se erguem das sepulturas e ali se mostram em atitude de respeitosa obediência.
O resultado não podia ser outro: as clarissas rebeldes arrependem-se da soberba e acatam a autoridade da nova superiora.

Muito rapidamente contada, esta é a lenda da Berengária, a lenda que a tela sobre o arcaz quer ilustrar.
Uma lenda pode ser muito importante, por esta razão ou por aquela. Veja-se por exemplo a lenda do Galo de Barcelos. Não será importante essa lenda que projecta até o nome de Portugal no estrangeiro?
A narrativa da Berengária, se bem se repara, é edificante: valoriza virtudes indispensáveis à vida em comunidade, como a dedicação ao trabalho, a oração e sobretudo a obediência.
Esta lenda fez história: já vimos que há a grande tela e a tábua na sacristia que a evocam.
Em 1625, Fr. Luís dos Anjos recolheu-a no seu livro Jardim de Portugal, remetendo até para uma versão anterior em latim. Vejamos algumas das frases introdutórias da narrativa deste autor:

“Nele (no Convento de Sta. Clara) resplandeceu Sóror Brerengária entre as outras religiosas como sol entre nuvens ou a lua entre as estrelas; porque sabendo que todas as riquezas da divina sabedoria que o Filho de Deus feito homem nos veio ensinar à terra se vieram a resumir, como em suma, que aprendêssemos dele a ser mansos e humildes de coração, amou por extremo a mansidão e humildade, pelo qual servia como escrava e, para mais se humilhar, de perpétua cozinheira; mas Nosso Senhor pôs seus olhos nela e escolheu-a pera abadessa, nesta maneira”.

E agora a parte final, quando ela dá a ordem às monjas falecidas:

“- Pois que minhas irmãs me desprezam e não me querem obedecer, sendo sua legítima prelada, levantai-vos as que dormis neste lugar, obedecei-me.
Logo ressuscitaram sete religiosas que ali estavam sepultadas e não desapareceram senão depois que as outras obedeceram mui arrependidas de sua culpa e Sóror Berengária o mandou, a qual é bem digna de ser contada entre as portuguesas mais ilustres em virtude por esta maravilha e, inda sem ela, pela humildade e caridade com que adornou sua alma na vida até sua ditosa morte, como piamente podemos crer, pera glória de Deus Nosso Senhor, que sempre seja louvado. Ámen”.

Caso esta história tivesse sido realidade e não lenda, era de crer que ela tivesse um efeito duradouro e benéfico na vida da comunidade. Algo semelhante ao que então poderia ter acontecido se passou de facto a partir de 1515. Nessa altura, havia relaxamento manifesto em Santa Clara. Mas houve uma reforma muito decidida, passando a estar à frente do Convento a abadessa D. Isabel de Castro. Durante o seu abadessado, as coisas seguiram um rumo exemplar.
O escritor vilacondense Joaquim Pacheco Neves dramatizou, em 1980, a lenda de que tenho vindo a falar, intitulando a peça produzida de A Lenda da Berengária. A obra tem páginas muito bonitas. Veja-se o fragmento do diálogo que conclui a obra e que se passa após a eleição, à noite. A Berengária encontra-se no seu quarto, esgotadíssima. Quer rezar, mas o cansaço é mais forte que a sua força de vontade. O diálogo decorre entre ela e uma Voz, que é a de Jesus:

“IRMÃ BERENGÁRIA – Não me deixais ser Abadessa?

VOZ – Não, minha filha amantíssima. Tu vieste para servir, não para mandar. A tua humildade, a tua mansidão, a tua obediência ficarão a ser lembradas para que a comunidade as siga. A tua piedade também é consoladora. Ser Abadessa não te en­grandece. O que te engrandece é seres pura do coração e amares a Deus, amando o próximo. Vem, Berengária. Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso.

IRMÃ BERENGÁRIA (resignada) – Eu Te seguirei. Tu és o meu Senhor e o meu Deus. Faça-se a Tua vontade.

(Berengária faz um esforço para se levantar. Sem forças, cai desamparada no chão e geme. De olhos estacados no crucifixo, estende um braço, como se quisesse segurá-lo nas mãos. Está assim uns momen­tos, até que o braço tomba e fica parado. O pano começa a descer lentamente, ao mesmo tempo que um cântico suavíssimo parece vir das Alturas e um facho de luz, gradualmente mais forte, se pro­jecta na imagem de Cristo.)”

A beleza do trecho impõe-se por si. A Berengária já tinha trabalhado o suficiente e deixava um belo património de exemplo ao mosteiro; agora era hora da recompensa. De resto, faltar-lhe-iam mesmo algumas qualidades para o cargo.
Hoje em dia, as pessoas, quando falam de freiras, parece que só vêem recalcamentos, vidas falhadas e outras coisas do género. O que é claramente erro. Muitas mulheres se entregaram e continuam a entregar à vida religiosa por paixão, sem um momento de arrependimento. Não foram só as Madres Teresas, santas como as Teresas de Ávila ou de Lisieux ou Santa Edith Stein. Houve muitas, muitas Berengárias ao longo da história.

Em Santa Clara houve uma outra lenda também interessante: foi a da Menina do Merendeiro. Fala duma irmã particularmente devota de Jesus-Menino.
Um dia esta clarissa pediu autorização para levar a merenda para a sua cela, em vez de a comer em comunidade, como era hábito. Quando o pedido se repetiu, começou a causar estranheza, pois dizia ela que era para repartir com Jesus-Menino. As outras freiras deram largas à imaginação: será que ela tinha um filho no quarto? Isso seria o máximo do escândalo. E começaram a espiá-la.
De facto, chegaram a ver um menino na cela, mas foi coisa de pouco tempo. Depois, nem rasto dele: era Jesus-menino.[1]


Bibliografia

NEVES, Joaquim Pacheco, O Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde, Vila do Conde, 1982.
NEVES, Joaquim Pacheco, A Lenda da Berengária, Ed. Ser, Vila do Conde, 1980.
ANJOS, Fr. Luís dos, O Jardim de Portugal, Porto, Campo das Letras Editores SA, 1999. (Edição, introdução e notas de Maria de Lurdes Correia Fernandes). 


[1] Uma outra célebre lenda de origem monástica a é a d’O Monge e o Passarinho. No Diário do Minho de 16/2/02, escreveu-se sobre ela que «no tomo II dos Tratados Vários, conta o padre Manuel Bernardes esta velha lenda que ouviu, primeiro, em Vilar de Frades e, mais tarde, em Rates».
Fala ela dum monge a quem fazia impressão certo versículo bíblico que declara que «mil anos diante de Deus são como o dia de ontem que já passou».
Aconteceu um dia ele ouvir na cerca um passarinho cujo canto o extasiou. Pôs-se a ouvi-lo e a seguir regressou a casa. Para grande espanto seu, não reconheceu lá ninguém e também ninguém o conhecia a ele. Alguém propôs que se consultasse o arquivo do mosteiro. Descobriu-se então que era um monge de há 300 anos atrás…
Isto é, se o passarinho o encantou a ponto de se passarem 300 anos no que o monge julgou serem no máximo algumas horas, que seria se ele se encontrasse diante de Deus!

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