D. Afonso Sanches
trovador
D. Afonso Sanches foi um poeta (então
dizia-se “trovador”) de certo mérito. Chegou até nós uma dezena e meia de
poemas com a sua assinatura. O mais belo de todos é uma cantiga de amigo, uma
paralelística; uma verdadeira jóia poética, que ele certamente não escreveu,
mas que teve o mérito de recolher. Ouçamo-la:
Dizia la fremozinha:
- Ai Deus val,
Como estou d’amor ferida!
- Ai Deus val,
Como estou d’amor ferida!
Dizia la ben talhada:
- Ai Deus val,
Como estou d’amor coitada!
- Ai Deus val,
Como estou d’amor ferida!
- Como estou d’amor ferida!
- Ai Deus val,
Não vem o que ben queria!
- Ai Deus val,
Como estou d’amor ferida!
- Como estou d’amor coitada!
- Ai Deus val,
Não vem o que muit’amava!
- Ai Deus val,
Como estou d’amor ferida!
As paralelísticas, que são poesia
de mulher solteira, consideram-se a poesia menos artificiosa da nossa
literatura; as repetições são constantes. Uma cantiga assim implicava a existência
de dois coros, um que começava e a quem cabia a originalidade do canto, e um
segundo, que repetia as estrofes do primeiro, introduzindo muito ligeiras
alterações. A progressão fazia-se por pares de estrofes.
Exemplifiquemos com caso
presente. O coro inicial cantava:
Dizia la fremozinha:
- Ai Deus val,
Como estou d’amor ferida!
- Ai Deus val,
Como estou d’amor ferida!
A seguir, o segundo coro respondia-lhe:
Dizia la ben talhada:
- Ai Deus val,
Como estou d’amor coitada!
- Ai Deus val,
Como estou d’amor ferida!
Como o segundo, quarto e quinto
versos se mantêm ao longo da cantiga ao modo de refrão, as únicas alterações
surgiam por substituição sinonímica: “fremosinha” passa a “ben talhada” e “ferida”
passa a “coitada”. As rimas, como também era da norma, mudaram de i para a.
Veja-se agora a terceira estrofe,
onde o primeiro coro introduz um verso novo.
- Como estou d’amor ferida!
- Ai Deus val,
Não vem o que ben queria!
- Ai Deus val,
Como estou d’amor ferida!
Apesar desta construção tão
elementar, encontram-se entre as cantigas de amigo alguns dos melhores poemas
da nossa literatura, como é aqui o caso.
Veja-se agora este fragmento
poético de D. Afonso Sanches, de natureza muito diferente da paralelística,
pois pertenceria a uma cantiga de amor; fala o homem:
Vedes, amigos, que de perdas hei
dês que perdi por meu mal mia
Senhor:
perdi ela que foi a ren melhor
das que Deus fez e quanto
servid’hei.
Perdi, porém, e perdi o riir,
perdi o sen e perdi o dormir,
perdi seu bem, que não atenderei.
Tanto quanto as cantigas de amigo
primavam pela simplicidade, domina aqui o artificiosismo; a repetição folclórica
de versos quase desaparece.
Leia-se ainda esta
bela cantiga de amor de D. Afonso Sanches:
Sempre vos eu doutra rem mais
amei
Por quanto bem Deus em vós pôs,
Senhor;
Desi ar hei grão mal e desamor
De vós e, porém, mia Senhor, não
sei
Se me praza porque vos quero bem,
Se m’ar pese em por quanto mal me
vem.
Por quanto bem, por vos eu não
mentir,
Deus em vós pôs, vos amo eu mais
que al;
Desi ar hei meu grande afã e mal
De vós e, porém, não sei bem
partir
Se me praza porque vos quero bem,
Se m’ar pese em por quanto mal me
vem.
Por quanto bem Deus em vós foi
poer
Vos amo eu mais de quantas coisas
são
Hoje no mundo e não hei se mal
não
De vós e, porém, não sei escolher
Se me praza porque vos quero bem,
Se m’ar pese em por quanto mal me
vem.
Pero, Senhor, pois me escolher
convém
Escolho eu de ambas que me praza
em.
O
Dicionário da Literatura Medieval Galega
e Portuguesa (org. e coord. de Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani, Caminho,
Lisboa, 1993) traz um artigo onde D. Afonso Sanches é alvo de uma apreciação
francamente positiva:
“A
obra poética de Afonso Sanches apresenta características das mais singulares
dentro do âmbito da lírica galego-portugesa”.
Ou
então:
“As
nove líricas d’amor inscrevem-se,
quanto à textura formal, no número das mais requintadas do género, como
exemplos de cantigas de mestria à maneira provençal. Com efeito, os temas, a
estrutura métrico-estrófica e a retórica revelam um poeta culto e conhecedor da
tradição poética, embora capaz de variações por meio do registo irónico que, na
última cantiga, adquire um aberto carácter de troça do formalismo trovadoresco”.
Ao fazer agora a avaliação global
de D. Afonso Sanches, não se pode deixar de sentir um certo mal-estar, pois não
é aceitável a leitura encomiástica que da sua vida fez Fr. Fernando da
Soledade.
Foi sem dúvida um homem poderoso,
que marcou um período da história nacional e que teve uma palavra a dizer em
muitas terras que integram o nosso Arciprestado. Foi até um poeta de mérito não
desprezável. A sua generosidade foi inegável e grande (mesmo que originada
acaso em motivações políticas) e os efeitos dela grandes também; mas ainda
assim ele não brilha muito no nosso álbum. Ter sido alvo dum processo de
beatificação não o honra sobremaneira, já que a sua virtude não levantou voo.
A sua esposa, por quem
principalmente veio ao Mosteiro de Santa Clara o grandioso dote, como já foi
dito, parece muito mais merecedora da nossa veneração.
Bibliografia
AMORIM, Mons. Manuel, Póvoa
Antiga, Póvoa de Varzim, 2003.
FERREIRA, Mons. José Augusto, Os Túmulos de Santa Clara de Vila do Conde, Porto, 1925.
FERREIRA, Mons. José Augusto, Vila do Conde do Conde e o seu Alfoz, Porto, 1923
NEVES, Joaquim Pacheco, “Sobre a beatificação dos Fundadores”,
in Vila do Conde, "Boletim da Câmara
Municipal de Vila do Conde", nova série, n.º 9.
NEVES, Joaquim Pacheco, O
Mosteiro de Santa Clara Vila do Conde, Vila do Conde, 1982.
NEVES, Joaquim Pacheco, Vila
do Conde, 2.ª ed., Vila do Conde, 1991.
SOLEDADE, Fr. Fernando da, Memória dos Infantes, Lisboa, 1726.
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